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Resumos

Resgatar aquela coisa:
entre o arquivo, o afecto, e o futuro
Hélia Marçal

Nesta apresentação, vou discutir alguns dos desafios à preservação de obras em performance propostos nos e pelos arquivos de artes performativas. Vamos explorar o que se pretende preservar e quais os passos para pensar a significação destes processos a partir das coisas que se encontram nos arquivos.

Visibilidades e afectos no arquivo da história contemporânea
Luís Trindade

Esta apresentação começará por levantar algumas hipóteses sobre a natureza e potencialidades dos arquivos de história contemporânea. Partindo de um entendimento amplo da noção de arquivo – que inclui objetos audiovisuais, publicações periódicas, expressões quotidianas e ficcionais – discutiremos as consequências para o conhecimento histórico da utilização de fontes caracterizadas pela abundância, pela visibilidade e pela banalidade. A discussão incluirá uma reflexão sobre os aspetos mais expressivos dessas fontes, e sobretudo das suas dimensões formais, por onde por vezes se revela uma historicidade surpreendente.

Num segundo momento, explorararemos as potencialidades deste entendimento de arquivo num fenómeno histórico preciso: o processo revolucionário de 1974-75, ou, mais especificamente, a forte relação entre a participação popular e as expressões culturais, sobretudo fílmicas, que procuraram captá-la. Ver, hoje, os documentários do PREC como fontes históricas, abre-nos a um imenso campo de reflexão sobre a agência histórica da palavra e imagem revolucionárias, sobre a consciência da performatividade dos militantes, e sobre a relação entre ideias e emoções num processo político emancipatório.

E, no entanto, como proporemos para concluir, o significado histórico destas fontes fílmicas não depende apenas daquilo que é visível nesse momento extraordinário da nossa contemporaneidade, dependendo ainda de outros arquivos, porventura menos espetaculares e abertos a uma temporalidade mais longa, mas fundamentais para a reconstituição do significado histórico dos anos da revolução.

“O que é feito de si, Margarida de Abreu?”:
uma investigação em torno de um arquivo pessoal/familiar
Ana Dinger

O título toma de empréstimo outro título ­ “O que é feito de si, Margarida de Abreu?” ­, de um programa da RTP, de início dos anos 1990s, de autoria de Nunes Fortes e Paulo Alexandre, que, em episódios curtos, “recorda[va] os rostos e as memórias de algumas das [notáveis] figuras portuguesas (...) nos campos das artes, do desporto, e do espetáculo”. Margarida de Abreu foi uma das figuras entrevistadas, numa das suas últimas aparições televisivas. Este também foi o título adoptado na mais recente iteração do projecto de investigação em causa, uma espécie de instalação-performance ou visita guiada para uma pessoa a cada vez.

Citando a sinopse desse evento e outros textos escritos no decorrer da investigação, esta pergunta, “o que é feito de si?”, aponta, por um lado, para uma certa interrupção ou falta de visibilidade, como um intervalo entre uma presença intensa e manifesta e uma presença mais latente (que pode ser percepcionada como ausência). Por outro lado, se lida com outra ênfase, a frase aponta para outro rasto: em que coisas há partículas de si? Que coisas resultaram de movimentos/gestos feitos por si? E, ainda, que matérias-resto convocam esses gestos?

Margarida de Abreu foi uma das introdutoras do método Dalcroze em Portugal ainda na década de 1930; em 1944, fundou aquilo que talvez se possa considerar uma proto-companhia de dança ­  o Círculo de Iniciação Coreográfica (CIC) ­ num panorama em que existia apenas uma companhia de dança no país, a estatal, ­ os Bailados Portugueses Verde Gaio (BPVG) ­; em 1946, publicou um manifesto; no início da década de 1960, e depois de se debater cerca de quinze anos pela sustentação do CIC, aceitou partilhar a direção artística dos BPVG com Fernando Lima; a sua actividade, sobretudo como professora/pedagoga, atravessou mais de sessenta anos, incluindo décadas de ditadura e o período pós-revolucionário.

O título-questão ­ “O que é feito de si, Margarida de Abreu?” ­ dá conta da direção deste trabalho que, assente no inventário e digitalização do arquivo pessoal/familiar de Margarida de Abreu, ensaia modos de partilha do mesmo, enquadrados num projeto mais vasto de investigação e criação artísticas.

Esta apresentação consiste numa descrição do que já foi concretizado no âmbito desta investigação e em alguns apontamentos em torno das questões conceptuais, epistemológicas e éticas nela implicadas. O que é que é possível dizer sobre Margarida de Abreu com base no seu arquivo? Que conversas são possíveis com essas coisas, arquivo-corpo? E como se articulam essas conversas com as conversas com as pessoas que dançaram no CIC e nos BPVG, corpos-arquivo? Que imagem desse “si” é que vou/vamos construindo e reconstruindo?

O desejo de arquivo
Ana Mafalda Pereira

O arquivo que tenho em mãos e a partir do qual me proponho refletir nesta comunicação é o arquivo pessoal de Isabel Alves Costa (1946-2009).

Nos últimos anos tenho vindo a desenvolver o meu projeto de tese de doutoramento intitulado “As estrangeiras. Um olhar feminista sobre o lugar periférico da mulher artista que atua entre o teatro e a educação” que me levou ao encontro com o espólio da Isabel.

Isabel organizou o seu espólio por capas e pastas, com datas, nomes, fotografias, documentos oficiais, recortes de jornais, cartas, construindo uma narrativa de si, inscrevendo-se numa prática, como afirma Artières em “Arquivar a própria vida”, de arquivamento do eu e da construção da imagem de si enquanto ato de resistência.

Com a sua investigação de doutoramento, concluída em 1997, e que dá mais tarde origem ao livro “O Desejo de teatro. O instinto do jogo teatral como dado antropológico” inicia práticas de arquivamento a partir da necessidade de analisar o seu próprio trabalho.

Pergunto-me se, ao construir este arquivo pessoal, Isabel desejaria que um dia alguém fosse tocá-lo e trabalhá-lo enquanto arquivo público de investigação.

No ano de 2023 o arquivo foi cedido pela família à ESELx. Aqui foi possível ver além das caixas empilhadas e dos vários documentos previamente sinalizados pela Isabel. O arquivo tinha agora mais espaço para respirar. Tentei distanciar-me do deslumbramento inicial destes primeiros encontros, ainda no Porto, e analisar, com um olhar mais preciso e menos obediente, as pistas que Isabel deixou em pequenas anotações em post-its para continuar o seu projeto. Interrogo-o na procura de incoerências e silenciamentos, consciente de que esta não é uma história única.

Para mim, enquanto mulher do teatro, a ideia de performar o arquivo para questionar e negociar os seus próprios limites e imaginar outras histórias possíveis era irresistível.

O projeto artístico “Mulher de. A construção de uma identidade.”, com estreia no Porto em abril deste ano, 2025, nasce desta vontade. Questionar o arquivo da Isabel a partir das minhas inquietações do presente, enquanto artista e investigadora e reinscrever a sua figura na história.

Nesse sentido, a noção de fabulação crítica, proposta por Saidiya Hartman e o trabalho de Diana Taylor sobre o repertório e o arquivo são cruciais na procura de vozes silenciadas nesta história, procurando imaginar outras narrativas possíveis, trabalhando entre, com e contra o arquivo.

Performar o arquivo, reimaginar passado, presente e futuro, desobedecendo-lhe e trazendo-lhe novas narrativas, mais ou menos ficcionadas, na tentativa de fugir à ilusão de tocar o real, para melhor entender posicionamentos e acontecimentos.

Questiono-me como olharia hoje a Isabel para o seu arquivo e para este novo arquivo que se começa a construir.

Desafio-me a olhar com distanciamento, permitindo-me confrontá-lo e resistir ao deslumbramento. Não negando a sua importância e a minha empatia e admiração pelo objeto de estudo que conta uma história que abriu caminho para a minha própria história.

Investigar a história do teatro português nos palcos ultramarinos:

desafios e possibilidades

Andrelise Santorum

A Global Theatre Histories, recente linha de investigação liderada por autores como Christopher Balme e Nic Leonardt, inaugura um amplo debate internacional acerca da necessidade de uma renovação na historiografia do teatro e das artes performativas a partir de novas perspectivas essencialmente transnacionais (BALME, 2012). Quando este debate é direcionado para países como Portugal torna-se ainda mais latente a necessidade de ampliar horizontes tendo em vista que não é possível separar a história metropolitana e a história colonial de Portugal, pelo menos até o início do contexto das independências em África.

No âmbito da história do teatro português, especialmente quando abordamos o contexto do Estado Novo (1933-1974), é fundamental que adotemos uma perspectiva de análise transnacional, buscando compreender o teatro produzido durante este período a partir da dinâmica relacional entre metrópole e colônias. Contudo, os trabalhos até então publicados que se dedicam a investigar o teatro português durante o salazarismo/marcelismo acabam por manter seus recortes geográficos restritos às fronteiras metropolitanas, ampliando suas análises no máximo para as itinerâncias que ocorreram para o Brasil durante este período. As poucas obras até então produzidas que mencionam a presença do teatro português nas parcelas do império o fazem de uma forma indireta, mantendo a tendência para o enfoque metropolitano. É preciso considerar, porém, que o vazio historiográfico existente em torno da temática do teatro português em África pode ser explicado pela série de desafios que se apresentam quando decidimos fazer uma pesquisa deste teor, muitos deles relacionados aos arquivos disponíveis para a investigação e ao acervo documental existente nestes arquivos.

Buscando colaborar com a abertura de uma nova vaga de estudos na historiografia dedicados a pensar o teatro português para além das fronteiras metropolitanas, iniciamos em 2019 uma ampla investigação sobre a presença do teatro português em África durante o Estado Novo, analisando as peças teatrais que foram representadas em palcos coloniais entre os anos 1930 e os anos 1970 pelas companhias teatrais portuguesas que durante este período partiram da metrópole rumo a África em turnê pelas colônias portuguesas, especialmente Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Nesta pesquisa temos trabalhado com uma extensa gama de fontes históricas como textos e programas teatrais, periódicos, correspondências, ofícios e fotografias, documentação que se encontra salvaguardada em quatro arquivos portugueses, sendo eles a Biblioteca Nacional de Portugal, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o Museu Nacional do Teatro e da Dança e o Arquivo Histórico Ultramarino.

Nesta comunicação pretendemos compartilhar alguns pontos centrais desta pesquisa e do seu percurso de construção, mostrando os vestígios existentes nos arquivos portugueses sobre a presença do teatro português em África e propondo as seguintes reflexões: Como se constrói uma investigação e de que forma ela está ligada ao arquivo? Quais desafios são impostos ao pesquisador quando a sua temática de investigação possui um teor transnacional? Que cuidados precisamos ter enquanto condutores de uma investigação? E ainda, quais as possibilidades que existem para futuras investigações interessadas em ampliar seus horizontes para o ultramar português?

O que constitui a memória da criação artística?
Tiago Bartolomeu Costa

Entre 2021 e 2024 desenvolvi um trabalho sobre a memória de três instituições culturais, apostado em refletir sobre o modo como participaram na construção de uma herança não só artística como política e social. A publicação Cadernos do Rivoli nº08 e 09, encomendada pelo Teatro Municipal do Porto para marcar os 90 anos da inauguração do Teatro Rivoli, com uma abordagem assinada por mais de 30 autores que analisaram a história do edifício e o impacto das opções programáticas e políticas realizadas em seu nome; o projeto curatorial MAIS UM DIA, encomendado pelo São Luiz Teatro Municipal para marcar os 48 anos passados sobre a revolução de 25 de Abril de 1974, que inclui uma exposição, um ciclo de debates e uma programação de espetáculos; e a exposição Quem és tu? Um teatro nacional a olhar para o país, encomendada pelo Teatro Nacional D. Maria II no âmbito do programa Odisseia Nacional, que se focou numa reflexão entre o edifício e a missão de um teatro com nacional no seu nome, constituíram oportunidades para um trabalho sobre os arquivos destes três teatros e, ao mesmo tempo, sobre a sua performatividade institucional. Ou seja, sobre o modo como a partir da criação artística, e do que sobre ela pode ser arquivado, podemos e devemos questionar a relação entre memória e história.

A partir destes três casos concretos – um livro, um programa curatorial e uma exposição – pretende-se abordar a historiografia dos arquivos das artes do espetáculo, entendendo o ato de transmissão de um arquivo como algo ativo e reativo às memórias coletivas, vividas ou herdadas. Enquanto matéria de potencial construção de uma nova memória, a relação que os objetos e os arquivos documentais estabelecem entre si, e entre as instituições que os conservam contribui para uma compreensão mais profunda das razões que poderão ter originado as propostas criativas. Assim, o estudo sobre os arquivos deve procurar fazer uma análise contextual e relacional entre a prática e o social, mais do que uma reflexão crítica sobre a pertinência ou validade dos espetáculos. Os arquivos podem e devem ser questionados a partir do que não contam, ou potenciam, no mesmo plano em que a sua preservação contribuiu para criar sentidos que só se tornarão visíveis e acessíveis através de uma leitura mais ampla e não necessariamente exclusiva da prática teatral. Nesse sentido, como pode ser demonstrada uma relação não hierarquizada entre a documentação decorrente do processo de produção, os elementos que contribuíram diretamente para a dimensão artística de uma criação, e os materiais que iluminem e perspetivem a receção desses espetáculos? Nesta intervenção, proponho-me a abordar o modo como a memória dos teatros – na produção acolhida e na sua missão – participam na construção de uma memória contemporânea e relembram a dimensão cívica que existe na condição de leitor, espetador e visitante.

arquivos de dança - os mapas que fomos desenhando
até chegarmos a dança não dança - arqueologias da nova dança em Portugal
Ana Bigotte Vieira

A partir da cartografia das várias dezenas de acervos documentais visitados localizados e reunidos no âmbito da investigação que deu origem ao ciclo de (re)performances, catalogo e exposição dança não dança. arqueologias da nova dança em Portugal (Fundação Calouste Gulbenkian Nov. 2024- Jan. 2025) gostaria de problematizar tanto alguns dos desafios que se colocam à própria sistematização levada a cabo neste âmbito, como os vários problemas com que muitos dos acervos que encontramos  ao longo dos sete anos da pesquisa se deparam. Procuro com isto contribuir para um pensamento que tenha em conta não apenas a construção de modelos comunicantes de arquivos relacionais e em rede, como leve a sério as especificidades historiográficas que os arquivos de artes performativas colocam às praticas arquivísticas de inventariação, indexação, catalogação, preservação e disponibilização pública (ou de acesso restrito). Neste sentido, a experiência acumulada na construção do acervo que serve de base à exposição, poderia, em condições adequadas, ser considerada modelar e prototípica no que a este género de artes diz respeito, pois o seu corpus documental não apenas reúne várias décadas, como atravessa agentes tão distintos como teatros, museus, fotógrafos, artistas, familiares de artistas, abarcando grande parte das instituições que, no país, lidam com artes performativas, desdobrando-se por materialidades muito distintas, constituindo, porventura, um caso ímpar no que diz respeito a acervo de material audiovisual.

dança não dança – arqueologias da nova dança em Portugal é um programa dedicado a diferentes manifestações da dança, procurando situar aquilo a que, nos anos 1990, se chamou a Nova Dança Portuguesa, não sem dar conta do que de “novo” existe numa multiplicidade de ocorrências que atravessam o século XX. Trata-se de “dançar o nervosismo da história”, experimentando, pelas danças, as contradições do tempo em que estas ocorrem, dando a ver possíveis outros tempos.

A exposição constrói-se com diferentes materiais de arquivo e registos de dança (documentos audiovisuais, fotografias, cartazes, publicações, ephemera, partituras…) inscritos numa perspetiva alargada das transformações sociais e culturais e do discurso sobre o que pode ou não ser dança.

Com a curadoria de João dos Santos Martins, Ana Bigotte Vieira, Carlos Manuel Oliveira e Ana Dinger, a exposição vem encerrar um programa de dois anos, dividido em três eixos, compreendendo também um ciclo de (re)performances, filmes e conversas, um livro-catálogo. Cada um destes eixos percorre o século XX e início do século XXI, problematizando à sua maneira representações lineares do tempo, ecoando os restantes e dando a ver as danas e as suas histórias de diferentes perspectivas.

.Resultado de uma pesquisa iniciada em 2016 por João dos Santos Martins e Ana Bigotte Vieira esta é a VII edição do projeto Para Uma Timeline a Haver – genealogias da dança como prática artística em Portugal

Os documentos da iluminação cênica como modos de fazer e transmitir conhecimentos
Berilo Nosella

A presente comunicação, que se propõe sobre o tópico “usos dos arquivos e formas de transmissão”, objetiva apresentar algumas questões e resultados da pesquisa “A documentação da iluminação cênica como modo de fazer, formação e transmissão de conhecimentos”, desenvolvida entre 2022 e 2025 na Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A pesquisa coletou e analisou um conjunto de documentos produzidos por light designers brasileiros, argentinos e italianos, a fim de identificar seus potenciais de pesquisa no campo da história do espetáculo, compreender suas gêneses e funções e, como objetivo maior, produzir um Guia de Catalogação arquivista para este tipo de documento. Partindo da definição estabelecida pelo Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ, 2008), Brasil, de que documento é a unidade de registro de informações, qualquer que seja o formato ou o suporte, estabelecemos o pressuposto de que todo registro relacionado ao trabalho do light designer carrega informações sobre, não apenas o próprio processo criativo daquele trabalho, mas também resquícios do que foi a própria obra cênica. Assim, cada registro relacionado a este trabalho se constitui em um documento que transmite tanto informações sobre o próprio trabalho quanto sobre sua historicidade e seus contextos socioculturais, podendo constituir rica fonte de investigação, embora, entre nós, não seja preservado nos arquivos. Neste sentido, o Guia de Catalogação específico destes documentos pretende contribuir, junto aos arquivistas brasileiros, para que possam identificar, preservar e difundir estes documentos e, consequentemente, transmitir os conhecimentos e informações ali contidos. O referido projeto está sendo coordenado por mim, historiador do teatro, e pela professora Fabiana Siqueira Fontana, arquivista e historiadora do teatro. Na comunicação apresentarei a trajetória e as questões metodológicas da pesquisa, assim como alguns resultados, ainda em processo, do referido Guia de Catalogação dos documentos da iluminação cênica, buscando abordar, no conjunto de contextos socioculturais diversos, quais são, como se compõem e que informações cada um destes documentos transmite. Também serão destacadas questões relativas à salvaguarda e preservação destes documentos, considerando não apenas aspectos técnicos e tecnológicos, mas também político-conceituais, no âmbito dos arquivos brasileiros.

Um olhar cúmplice: O Parque Mayer e a revista à portuguesa pelos olhos de Velo Gomes durante a segunda metade do século XX
Raquel Mira

A investigação sobre as artes histriónicas em Portugal tem sido alvo de um interesse crescente, sendo o arquivo uma instituição que salvaguarda coleções documentais que se tem revelado de extrema importância para a evolução deste campo de estudos. São conhecidas as tipologias dos fundos arquivísticos, o fundo que me proponho apresentar nesta comunicação tem características específicas que considero muito interessantes. Trata-se do espólio inédito de um fotógrafo, Manuel António Velo Gomes, cuja carreira ocorre na segunda metade do século XX, quase sempre em torno do Teatro de Revista e do Parque Mayer e seus teatros e cuja importância reside precisamente na possibilidade de documentar fotograficamente quatro décadas da vida artística desse importantíssimo espaço teatral e cultural da capital. Através da fotografia de Velo Gomes é possível seguir os principais actores e atrizes que aí trabalharam, mas também a vida e a actividade de muitos dos outros intervenientes na montagem, ensaio e apresentação de todas as revistas à portuguesa aí apresentadas. A outra característica importante neste espólio fotográfico é o facto de ele pertencer ao acervo do Museu Nacional do Teatro e da Dança, havendo o interesse expresso pelo Museu em que este espólio seja tratado arquivisticamente e que seja inventariado. É exactamente sobre Manuel Velo Gomes e a sua actividade como fotógrafo profissional o objecto do doutoramento em História da Arte que desenvolvo na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, projecto valorizado com uma bolsa da FCT. Para esta comunicação investigámos a importância dos arquivos para a construção da história do teatro, e ainda a fotografia enquanto documento histórico, e a sua importância para a compreensão da atividade teatral. É já bem conhecida a relação entre a fotografia e o teatro, ambas artes de reconhecida importância, assumindo esta maior relevância documental quando, como é o caso, acompanhou a evolução e a decadência de uma prática teatral de evidente importância para Portugal, tanto como forma de arte, como actividade de âmbito empresarial. Com o passar das décadas e a recorrente utilização da fotografia, surgiram também os primeiros trabalhos de recuperação e preservação das fontes iconográficas, levando a novas problemáticas.  Tal como um registo escrito, a fotografia passa também a ser questionada e investigada, merecendo uma reflexão e um trabalho de “confronto” de fontes e ideias.

O surgimento com maior acuidade no séc. XX, de novas tipologias documentais, especialmente a fotografia, demonstrou a necessidade de se estudar o conteúdo cultural desse material e de o utilizar na investigação historiográfica.

É nesse contexto que a nossa investigação faz sentido, porque através de um espólio fotográfico, que retratou o Teatro de Revista e o Parque Mayer na segunda metade do século XX, ser-nos-á possível traçar a história de um género teatral que assumiu uma importância notável em Lisboa.

Publicação de dramaturgia brasileira:
Entre documentação e obra, teatralidade e memória
Lígia Souza

Os livros de dramaturgia são, tradicionalmente, um dos maiores arquivos da história do teatro. Grande parte da história do teatro é também recuperada a partir das dramaturgias que registram parte da efêmera arte da cena. Além disso, nos últimos 20 anos o cenário teatral e literário brasileiro viu florescer um maior interesse na publicação de dramaturgias, encenadas ou não. O projeto de pós-doutorado “O livro em Performance - algumas reflexões sobre a publicação de dramaturgia1”, pretende refletir sobre essas obras na contemporaneidade brasileira.

O pesquisador francês e também editor da Éditions Théâtrale Pierre Banos-Ruf escreveu em sua tese de doutorado reflexões sobre a estética, a política e o mercado literário na publicação de dramaturgia na França. Em determinado trecho, ele indica tipos de obras de acordo com a tipologia: (1) o livro-programa ou livro de palco2 são aqueles que têm uma ligação direta com a representação da obra. Sem nenhuma preocupação com a reintegração da dramaturgia à literatura, o texto se mostra apenas como um elemento da representação, um testemunho, isso que se chama neste projeto de registro, memória ou arquivo teatral; já o (2) o livro de teatro (gênero teatral específico)3 normalmente não possui uma abordagem exclusiva que o diferencie das outras publicações e quase nunca têm relação com encenações, contudo, não escondem o gênero a que pertencem: dramática; a última categoria, (3) o livro de literatura teatral4 tem um compromisso muito forte com a reinserção da dramaturgia no campo literário, normalmente não possuem em sua capa nenhuma indicação que os vinculem ao teatro, haja vista sua postura reivindicatória da dramaturgia como objeto de leitura.

Mais do que uma tentativa de adequar as produções a categorias enrijecidas, a indicação de Banos-Ruf auxilia na construção de um olhar expandido e diversificado sobre as possíveis maneiras de publicar dramaturgia. A partir dessa 

categorização, parte da pesquisa se debruça na análise de algumas obras que transitam entre registro e estética, num diálogo com a representação, seja ela anterior à publicação ou projetos de encenações vindouras. Dessa maneira, alguns recentes livros de dramaturgia brasileira se aventuram nessas fronteiras nada delineadas: se oferecem à leitura literária ao mesmo tempo que se propõem teatralidades de registro na página, ou seja, se interessando pelas experimentações fora de categorizações rígidas, “a fronteira entre arte e vida, obra e documentação é muitas vezes ultrapassada”5.

Nessa comunicação pretendemos apontar a publicação de dramaturgia brasileira contemporânea como uma proposição que, por um lado, se coloca cada vez mais nas estantes das livrarias e nas mãos dos leitores e, por outro lado, tentam dialogar com encenações realizadas anteriormente, trazendo à tona um percurso, uma documentação cênica. Para ilustrar, apresentaremos o livro “O jardim6” de Leonardo Moreira, editado em 2012 pela SESI-SP Editora, no qual elementos de arquivo e memória do espetáculo se misturam ao texto performativo, dialogando com a oralidade e auralidade do espetáculo. Por fim, nos questionamos: pode ser o livro de dramaturgia uma proposição de arquivo ao mesmo tempo em que reativa o arquivo esteticamente através da leitura?

(1)Esta pesquisa é desenvolvida na UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas/SP e financiada pela FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (processo: 2023/05051-4).
(2) Livre tradução do termo: Le livre-programme ou le livre de plateau (BANOS-RUF, 2008, p. 451).
(3) Livre tradução do termo: Le livre de théâtre (genre littéraire spécifique) (BANOS-RUF, 2008, p. 451).

(4) Livre tradução do termo: Le livre de littérature théâtrale (BANOS-RUF, 2008, p. 452).

(5) Amir Cadôr, Ainda: o livro como performance. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2014, p. 29.
(6) MOREIRA, Leonardo. O jardim. São Paulo: SESI-SP. 2012.

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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto ARTHE - Arquivar o Teatro

«PTDC/ART-PER/1651/2021»

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